Passei por ele quando me dirigia ao restaurante na hora do almoço.
Por sua postura, seu modo de estar ali, de pé, ao lado de um outra casa de comida a quilo mais modesta, pressenti que tinha alguma relação com o dono do lugar, ou com alguém que ali estivesse. Talvez esperasse alguém.
Entrei no restaurante, aspergi algumas gotas de azeite português no meu prato, legumes frescos, escolhi o arroz integral - e um pouco do branco só para o gosto -, pus uma meia concha de feijão branco, procurei o peixe, optei pelo escalope, pesei, peguei a comanda e sentei-me sob o ar refrigerado, enquanto via o jornal Hoje passando na tv.
A televisão maior, a da vida, abria-se antes meus olhos lá fora, enquanto o mundo, o meu, o protetor, fechava-se cá dentro.
E lá continuava ele, sussurrando - agora eu passara a ver - para quem lhe passasse bem perto, algo que não se precisava ter ouvidos para saber: "Pode me pagar um almoço?".
Todas as pessoas, sem exceção, não deram nada.
Correção, uma deu um sinal com a mão para que ele não a importunasse, enquanto entrava naquela lanchonete pegada ao restaurante.
Não comi com os olhos no prato. Dividiu-se a minha atenção entre os dois lados.
Tive antipatia dele. Por que será que este moleque, ao invés de ficar esperando com essa paciência sabuja algum bobo perdulário, com essa esperança mole da fome saciada pela mariposa eventual na sua teia, não ia tentar trabalhar em alguma coisa?
Mordi um pedaço de carne.
Sem sabor.
Devia ter uns dez anos e continuava lá, a olhar de um lado para outro, e esperando o próximo ouvido surdo.
Fácil de se ver, de se prever, era do tipo que não iria dar em nada. Se desse, seria para o latrocínio, para a aspiração de cola de sapateiro, do tipo que não alcança a maioridade vivo. Malandragem vazando pelos poros.
Mordi outro pedaço de carne.
Não tinha sabor. Convalescia de uma gripe vencida.
Só por isto não sentia gosto.
Ele falava, às vezes, sozinho. Reclamava - intuí - da falta de solidariedade, dessas que o governo gosta de fazer, dando peixes fáceis sem precisar de anzóis.
Não vai mesmo dar nada na vida.
Usava uma jaqueta vermelha, meio surrada, já tendente ao grená pela insistência, uma bermuda da mesma tonalidade e um tênis.
Não de todo mal, apenas com o uniforme inequívoco dos de rua.
Parecia frágil...
Este meu almoço não está me fazendo bem.
E se fosse meu filho? E se tivesse uma fome daquelas que paralizam qualquer iniciativa, até a de roubar?
Franzino. Com certeza sem pai e sem mãe; se tivesse, onde andariam eles? Bebendo em alguma birosca na favela? Com certeza nunca foi à escola, ou, se foi, não aprendeu nada por gosto à vadiagem.
Precisava falar com ele... Mas, ele estava já há algum tempo ali... As pessoas já haviam percebido o que ele queria, se eu chegasse para lhe dar dinheiro todos iriam me olhar... Não vou nada...
Que almoço comprido e pesado.
Vou, sim... Não posso me omitir... Lhe pago o almoço, ou pelo menos lhe pago um sermão...
Levantei-me para pagar o meu, que não me fez bem.
Caí em mim querer que, ao olhar por essa vidraça num outro dia, meu almoço futuro não me viesse a pesar novamente.
Paguei, saí e fui, resoluto, na direção dele. Tinha um plano para evitar os olhares, que, na verdade, escondia a minha falta de força, de personalidade própria.
Passei por ele e lhe disse: você quer almoçar?
Ele respondeu que sim. Eu disse vem comigo que lhe quero fazer umas perguntas.
Prontamente ele me seguiu. Dei alguns passos - uns vinte - e parei. Ele chegou.
-Olha - eu disse-, vou pagar o seu almoço, mas antes quero que você me responda umas perguntas.
-Você sabe ler e escrever?
-Sei, Tio.
-Pois bem, não aceite a vida do jeito que ela está passando por você. Lute para mudar. Não deixe a vida te levar.
Ele me escutava atentamente. Tinha uma pele bonita.
-De onde você é? Você mora na rua?
-Sou de Volta Redonda... Vim para encontrar um amigo meu, mas ele me deixou na mão... Me largou e desapareceu... Cheguei ontem na cidade. Não comi nada. Dormi na rua.
-Você tem pai e mãe?
Ele fez que sim.
-Que idade você tem?
-14 anos...
-Vai voltar para Volta Redonda?
-Não tenho o dinheiro da passagem.
Parecia ter dez anos.
-Olha, não se mete com drogas...
-Eu não uso drogas, Tio...
-Tanto melhor... Olha, viver com más companhias é muito fácil. Difícil é não se meter em confusão... Mas trabalhe, leia tudo que você encontrar, procure as bibliotecas, elas existem e não custam nada...
Ele olhou para um lado e para o outro. Tinha uma expressão de gente boa. Não havia deboche no seu falar, nem o maneirismo característico da malandragem carioca. Era manso e não escondia de me olhar nos olhos.
-Agora, uma dica: Compre uma caixa de engraxate, trabalhe e guarde um dinheiro para você...
Ele fazia que sim, acompanhando o que eu disse.
Por fim, meti a mão no bolso e tirei uns dezoito reais.
Os olhos dele brilharam.
-Isso dá?
Ele fez que sim, não me lembro se ele me agradeceu, e eu fui andando. Olhei para trás, antes de virar na esquina e o vi falando com o dono da lanchonete, que pegava parte do dinheiro.
Agora, meu amigo leitor, você já viu alguém fazer uma abordagem mais desastrada, ridícula, sem nenhuma eficácia para ajudar alguém que precisava?
Já presenciou alguma vez um discurso tão inútil e ridículo?
Já parou para pensar no constrangimento que fiz esse menino passar?
Eu precisava fazer alguma coisa! E fiz! Uma humilhação!
O almoço, claro, serviu. Mas, e o amanhã? O que será deste menino? O que eu poderia fazer, o que eu posso fazer em novas circunstâncias?
Continuo eu do lado de cá da vidraça.
Agora prisioneiro.
Não sei o que fazer.