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Manhã amazônica.
O rio e o céu olhavam-se; dois Narcisos perdidos da Grécia a intercambiar olhares e suspiros apaixonados; o céu na água e o rio no céu, traduzidos em torvelinhos e nuvens; remansos e correntes, entrelaçamentos discretos, enlevados, embevecidos numa assexuada fusão de seus corpos naturais até a linha do horizonte.
Àquela hora da manhã, apenas os remos do barco fendiam o silêncio manso e preguiçoso das primeiras horas. Algumas poucas nuvens altas, e suas réplicas flutuantes na correnteza sutil da obesidade grávida das chuvas recentes, refletiam a luz do sol com a intensidade de poderosos a ter, nos primeiros movimentos estudados e avaliadores de estratégia de ataque, intenção preguiçosa de luta; eram dois gigantes a se medirem sem empenho.
As sombras das árvores, agora mais próximas, lançavam tintas - negras de luz - na água, reforçando, por contraste, a qualidade, a limpidez do rio em época de cheia generosa.
John Mackenzie embicou a canoa de alumínio para a margem mais próxima; lançou a garatéia, fixou-a num galho baixo e puxou o conjunto para a imobilização completa.
Saltou para a água rasa, chapinhou na direção da terra firme; arquejou sob o peso da mochila.
Vistoriou o terreno, desceu o volume no chão, desenlaçou o cordões que o fechavam e retirou a carga explosiva. Ativou o aparelho GPS, reviu as coordenadas e tornou a fechar a tampa. Destravou o visor, pressionou os botões de controle e marcou o tempo de explosão para dali a duas horas, tempo suficiente para se afastar com segurança.
Voltou ao barco e digitou no telefone de tecnologia espacial os números da base.
- Na posição! - disse, desligando.
Afastou-se, remando firme e ritmadamente.
Duas horas decorreram-se até que as primeiras fumaças manchassem o céu azul e, mesmo àquela distância, as primeiras labaredas apareciam no ar e ocultavam-se por detrás das grandes árvores como línguas rápidas e vermelhas.
Manhã amazônica.
O rio e o céu olhavam-se; dois Narcisos perdidos da Grécia a intercambiar olhares e suspiros apaixonados; o céu na água e o rio no céu, traduzidos em torvelinhos e nuvens; remansos e correntes, entrelaçamentos discretos, enlevados, embevecidos numa assexuada fusão de seus corpos naturais até a linha do horizonte.
Àquela hora da manhã, apenas os remos do barco fendiam o silêncio manso e preguiçoso das primeiras horas. Algumas poucas nuvens altas, e suas réplicas flutuantes na correnteza sutil da obesidade grávida das chuvas recentes, refletiam a luz do sol com a intensidade de poderosos a ter, nos primeiros movimentos estudados e avaliadores de estratégia de ataque, intenção preguiçosa de luta; eram dois gigantes a se medirem sem empenho.
As sombras das árvores, agora mais próximas, lançavam tintas - negras de luz - na água, reforçando, por contraste, a qualidade, a limpidez do rio em época de cheia generosa.
John Mackenzie embicou a canoa de alumínio para a margem mais próxima; lançou a garatéia, fixou-a num galho baixo e puxou o conjunto para a imobilização completa.
Saltou para a água rasa, chapinhou na direção da terra firme; arquejou sob o peso da mochila.
Vistoriou o terreno, desceu o volume no chão, desenlaçou o cordões que o fechavam e retirou a carga explosiva. Ativou o aparelho GPS, reviu as coordenadas e tornou a fechar a tampa. Destravou o visor, pressionou os botões de controle e marcou o tempo de explosão para dali a duas horas, tempo suficiente para se afastar com segurança.
Voltou ao barco e digitou no telefone de tecnologia espacial os números da base.
- Na posição! - disse, desligando.
Afastou-se, remando firme e ritmadamente.
Duas horas decorreram-se até que as primeiras fumaças manchassem o céu azul e, mesmo àquela distância, as primeiras labaredas apareciam no ar e ocultavam-se por detrás das grandes árvores como línguas rápidas e vermelhas.
Mackenzie pensava no que ajudara a começar trinta anos antes. Muita coisa acontecera depois daquela primeira bomba incendiária.
Tomou um gole de água cristalina e refrescante. Fazia muito calor naquele mês de janeiro. Deu um suspiro longo.
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- Eih! Acorda, Mackenzie... Dormindo acordado?
Paul Strudd, colega de Mackenzie, acabara de chegar sem fazer ruído. Agente de longa data na CIA (Central Intelligence Agency, dos Estados Unidos) como ele, não se importava senão com o cumprimento das ordens, sem entrar no espírito sobre a justiça das missões.
Obedecia, como todo bom soldado. Pago para ser apenas braços e pernas a serviço de vários cérebros remotos.
Paul também estivera naquela ação e também pusera outras bombas, coordenadas pelo Centro de Inteligência.
Mackenzie ignorou Strudd momentaneamente, embora tenha feito um sinal quase imperceptível para que se sentasse.
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Aquele incêndio fora o primeiro de muitos a levar o caos à independência política do Brasil do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, eleito anteriormente - duas vezes! - com milhões de votos por uma população ávida por mudança no sistema político arcaico, medieval, de sucessões verticais, familiares, hereditárias.
Tempos depois, o presidente viria a ser alvo de muitos críticas por aqueles que o elegeram e que se sentiram traídos, acusando-o de bandear-se para o lado dos conservadores.
Uma das razões pelas quais a CIA e outras agências coligadas tiveram sucesso na empreitada deveu-se ao excesso de confiança que, sem base na realidade, o Brasil daquele presidente reservara para si.
Para a CIA, o trabalho de desestabilizar o poder constituído não fora grande, diante dos improvisos e do amadorismo com que o sangue quente latino estava acostumado a tratar as coisas de ressonância internacional, negligenciando os movimentos crescentes e declarados das carências de energia e de água, preferindo o ufanismo às ações concretas para despontamento como um novo fornecedor mundial. E o Brasil poderia ter sido esse provedor independente.
O Congresso brasileiro, atuando contra seus próprios interesses, lutara entre si pelo poder interno, favorecendo por esta divisão a entrada de forças estrangeiras - primeiramente através do capital especulativo via Bolsa de Valores - com a vantagem de juros astronômicos que nenhum outro lugar no mundo retribuía. Assim, adquirindo ativos em território brasileiro, o BAN pôde consolidar-se em vários ramos da indústria, paralisando-a quando julgou necessário para sufocar as iniciativas de construção e reposição de material bélico.
De fato, uma bomba-relógio fora armada ao longo dos séculos por uma humanidade perdulária, inconseqüente, e posta ao colo dos brasileiros.
Sem perceber o perigo, as lutas internas, partidárias, desviaram a atenção dos integrantes do estado brasileiro para fatos distantes do próprio interesse nacional, da soberania e precipitaram os acontecimentos a favor do Bloco Atlântico Norte (BAN), que invadiu o território brasileiro num piscar de olhos, como os Estados Unidos fizeram no Iraque em março de 2003.
O BAN surgira na esteira filosófica da Comunidade Econômica Européia e do NAFTA (Tratado de livre comércio da América do Norte), criados anos antes, mas o novo centro político não se restringia a nenhum dos continentes de origem.
Constituíra-se numa Pangea política, drenando influência do hemisfério Norte e irradiando-a para o mundo inteiro.
Como antes na História, o plano invasor orquestrado pelas agências de inteligência governamental do bloco, o apoio internacional estava concentrado em um único quartel-general; muitos contra um. Como entre o Tigre e o Eufrates, coisa ainda recente na memória de todos, os fatos se repetiam.
Seguindo as primeiras e muitas outras ações incendiárias que mostraram ao mundo por esta medida artificial a inépcia dos governantes sul-americanos em controlar o que de súbito fora requisitado como patrimônio da humanidade - e pleiteado principalmente pelos países do BAN -, tropas infiltraram-se pouco a pouco ao longo dos limites do lençol dágua subterrâneo - o famoso Aqüífero Guarani - recurso mineral tal como o petróleo, de origem única e não renovável, de água doce, límpida, de excelente natureza, muitíssimo mais importante -, que se estendia por todo o Brasil central e meridional.
A movimentação das tropas através dos anos foram, primeiramente, disfarçadas em intercâmbio técnico militar nos países limítrofes ao Brasil, enquanto alguns integrantes permaneciam nos territórios com documentos falsos após os supostos exercícios.
Os homens treinados foram assim mantidos nos lados paraguaio, argentino e uruguaio, prontos para entrar em ação à primeira ordem do BAN, em perfeita sincronia entre os grupos para não despertar suspeitas ao Brasil.
Quando a incursão militar irrompeu, as largas fronteiras brasileiras, principalmente as desenhadas junto ao Paraguai e Bolívia, cujos governos litigiavam as questões energéticas hidráulicas e de gás natural, nas pessoas dos presidentes Fernando Lugo e Evo Morales, respectivamente, forneceram os pontos de acesso que surpreenderam as tropas desatentas brasileiras, carentes de recursos financeiros, técnicos e de material de guerra atualizados, contaminadas e dispersivas pela politização dos militares que jamais engoliram o fracasso de sua administração no campo político após o golpe apoiado pelos Estados Unidos, em 1964.
Do outro lado do mundo, paulatinamente e definindo-se claramente na década de 2030, esgotados os óleos fósseis para queima após sucessivas desacelerações industriais na criação de veículos movidos à gasolina e diesel, a tensão no mundo árabe deixou de vez a questão sionista-palestina para concentrar-se nas lutas internas pela necessidade de uma saída para a inutilidade daquela terra para a agricultura em grande escala.
A falta do óleo natural, dadivoso e explorado à exaustão, que não mais lhes davam condições de existirem como nações independentes e auto-suficientes no tradicional método de produção despreocupado e centenário, fê-los 'acordar para um pesadelo'.
Por um tempo, às primeiras privações, as populações do norte da África e da Ásia central migraram quase que como opção individual; mais tarde, massiva e descontroladamente, amontoaram-se nos países vizinhos, para o leste e para o sul, perturbando os históricos e precários equilíbrios geopolíticos das regiões.
Alterado dezenas de anos antes, o mundo percebeu claramente o que já sabia: o valor incalculável da água.
No início das migrações, a dessalinização das águas do mar veio como uma solução desesperada e sofrível, passando a requerer progressivos e massivos recursos financeiros,
que, drenando rapidamente os tesouros governamentais, fizera o método perder a eficicência e a razão de ser, o que ensejou o abandono de sua utilização.
As nações receptoras, hospedeiras forçados e incapazes de controlar sua própria gente, recebiam grandes grupos esfaimados, os quais as levaram ao vórtice iniciado quase que silenciosamente - embora perfeitamente marcado - na alta dos preços do petróleo trinta anos antes, por volta de 2008.
O mundo árabe sucumbiu definitivamente e seus povos juntaram-se aos africanos do norte e centro-africanos, tradicionalmente combalidos pelas guerras tribais da cobiça por petróleo e diamantes, dezenas de anos a fio, formando uma grande massa desesperada a vagar em trapos e macilentas pelas cidades inchadas.
Como gafanhotos ávidos, repelidos e sem saída, mudaram sua jornada para o Norte, do outro lado do Mediterrâneo, de onde foram rechaçados pelas armas dos países industrializados, que, por sua vez e de muito tempo antes, haviam limitado a entrada de estrangeiros que já não mais lhes serviam nas tarefas consideradas menos importantes.
Os conflitos se espalharam. Na vizinhança do sul da Europa, após alguns graves embates entre imigrantes e cidadãos, o alarme soou e o BAN nasceu de um dia para outro.
O bloco, percebendo a crescente deterioração da ordem mundial, teve a iniciativa de tomar para si o Aqüífero Guarany e também a Amazônia, a fim de garantir para os povos do Atlântico Norte a última reserva natural.
O mundo mudara para sempre e o centro político agora tinha o seu foco na América do Sul.
O etanol de cana-de-açúcar rapidamente forneceu energia do movimento ao mundo e a antiga OPEP - organização dos produtores de petróleo -, naturalmente sem ter do que tratar, desapareceu, substituída pela WEO - World Ethanol Organization - com sede no Rio de Janeiro e controlada pelo BAN.
Embora os confrontos bélicos não tivessem exigido todo o poder de fogo tecnológico do bloco, houve milhares de mortos no lado dos brasileiros, levando o país a transformar-se numa república vigiada, parlamentarista, onde o presidente era um brasileiro para efeitos apenas cosméticos e o primeiro-ministro indicado pelo bloco.
Os americanos e ingleses iam e vinham sem a necessidade de vistos em seus passaportes, o que não era concedido às demais origens. O controle alfandegário era severo.
À Venezuela, antigo produtor mundial de petróleo, foram enviados vários contingentes militares como grupo de paz, a molde do Haiti nos primeiros anos do século XXI, na verdade para evitar a entrada no país via fronteira de gente não desejada.
A fome alcançara Caracas, assim como a praticamente todos as outras capitais do Cone Sul.
O Aqüífero Guarani passou a fornecer água para o mundo inteiro, tanto in-natura quanto como veículo a cervejas, refrigerantes e outras apresentações alimentares, fazendo com que a linha dos lucros no gráfico do bloco disparasse ao vértice superior.
Enriquecendo-se rapidamente, o BAN entraria num novo projeto de irrigação no norte da África, aplicando técnicas desenvolvidas em laboratórios a céu aberto do Nordeste brasileiro a custo mínimo, pela oferta generosa de mão de obra nacional e também da importada dos demais países sul-americanos.
- Vamos? - disse Mackenzie.
John Mackenzie pôs o paletó e deu passagem ao amigo Paul Strudd.
Deixou alguns ethano-dólares na mesa e ambos atravessaram as pistas da Avenida Atlântica em Copacabana, Rio de Janeiro, Brasil, em direção às instalações de banho com chuveiros de água mineral do Aqüífero Guarani.
Mais tarde, conversariam sobre o que fazer com a Antártica.
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